Ser de esquerda

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Eu sou uma pessoa de esquerda, nem sempre fui, mas desde que entendi o que é ser de esquerda, nunca mais mudarei de lado.

Não se enganem, não vou pelo lado romântico, de que ser de esquerda é ser uma pessoa inteligente, intelectualizada, espiritualizada ou qualquer coisa que o valha, pois isso é uma casca de banana.

Ser de esquerda não torna ninguém melhor ou pior, até porque, se formos por esse lado, já entramos errado na discussão, já começamos com uma deturpação, confundindo a política com o moralismo, com a eterna dicotomia entre bem e mal, luz e trevas ou qualquer outro antagonismo.

Ser de esquerda é uma postura política, que pode, inclusive, refletir na postura como ser humano, mas não é requisito para ser de esquerdam, ser um santo, um ser humano evoluído ou alguém que está pronto para, do alto do seu pedestal, julgar a tudo e a todos.

Independente de posicionamento político, somos humanos e, como tal, somos imperfeitos, temos raiva, ódios, sentimento de vingança ou qualquer outro sentimento, que qualquer ser humano tem. Se você nega isso, procure um psicanalista.

Percebo, em comportamentos pelas redes sociais, muitas vezes, inclusive meu mesmo, uma grande confusão de conceitos, motivo pelo qual, resolvi parar e escrever esse texto, que num primeiro momento, serve a mim (talvez só a mim).

Grande parte das discussões são baseadas em ataques moralistas. Há inclusive a ironia do tal do “ódio do bem”, que ambos os lados usam para se atacar mutuamente. O ódio é um sentimento humano, ponto.

Da mesma forma, outra discussão inútil, mas de cunho igualmente moralista, que inclusive foi a mola propulsora de boa parte do anti-esquerdismo que hoje existe, é o combate à corrupção.

Quase que por uma convenção midiática, internalizada pela sociedade, passou-se a admitir que ser de direita é ser contra a corrupção e ser de esquerda é ser a favor a corrupção, uma vez que só governos de esquerda são corruptos. Balela.

Erros existem em todos os lados e, apesar de me considerar como alguém de esquerda do fio de cabelo (que nem tenho, é verdade) ao dedão do pé, não nego que qualquer político de esquerda é passível de falhas. É um erro da própria esquerda projetar essa aura de santidade nos seus representantes, até porque, isso incorre num risco muito grande, que é a decepção.

Analisar erros e acertos históricos é algo que devemos fazer sim, mas com objetivo de aprendizado, como autocrítica, mas nunca como argumentos para debates e embates, pois ficaremos reduzidos eternamente em apontar falhas nos outros. A política partidária é feita por pessoas e pessoas erram.

Quando reduzimos a discussão ao moralismo, entramos nesse ciclo sem fim de violência e ofensas e não mudamos nada, pois as questões estruturais, que verdadeiramente importam e precisam ser discutidas, segundo a visão política de cada corrente, ficam em segundo plano ou completamente esquecidas.

Quando entramos no moralismo, ficamos restritos as falas simplistas, como a de que a esquerda protege bandidos, quando a discussão não é o bandido em si, mas sim, todo o contexto humano e social que transformou aquele ser humano num bandido, assim como, as soluções e caminhos que podem ser dados ao “bandido”.

Não dá para simplificar uma complexa questão socioeconômica em “defesa de bandido”. Da mesma forma, não para simplificar outra complexa discussão, que é a reeducação ou ressocialização do infrator num “bandido bom é bandido morto”.

A discussão moral se apega ao que fazer com a pessoa que praticou o ato: punir ou absolver? Dar uma nova chance ou punir com a pena de morte? Por outro lado, ela ignora as causas do problema, se assemelhando ao analgésico, que trata a dor, mas não a origem do problema.

A questão política deve discutir não somente o fato em si, mas todo o contexto, considerando as inúmeras variáveis que levaram aquela pessoa ao crime, assim como, todas as medidas sociais necessárias para reintegrar esse indivíduo na sociedade.

Analisando a questão sob o olhar filosófico, a moral está relacionada aos costumes, regras, tabus e convenções estabelecidas numa determinada sociedade, portanto, ao reduzir a política a discussão moral, entramos num terreno perigoso, que vai acabar recaindo na pauta de costumes e crenças, que são importantes a uma sociedade, mas não podem se transformar no fator limitante ou determinante da visão política, que deve pensar a sociedade como um todo, contemplando todas as suas diversidades, em todos os aspectos, do contrário, começam as injustiças sociais, pois determinados grupos preferidos da posição política vigente serão beneficiados em detrimento dos grupos opositores.

Toda essa discussão é bastante ampla, complexa e impossível de ser encerrada num texto escrito por um ilustre desconhecido, mas precisamos começar a repensar a forma como tratamos a política, também sob pena de passarmos o resto da existência discutindo questões pessoais em sobreposição as questões de interesse geral.

Não compete a política, por exemplo, dar uma cesta básica a algum necessitado mediante a posição partidária dela. A política deve se preocupar em discutir a questão geral da fome, suas causas e quais ações serão feitas para eliminá-las, pois independente de ser esquerda ou direita, ninguém deveria ser submetido a passar fome.

A fome é a questão central. Entender a fome, suas consequências e suas soluções vão seguir caminhos distintos, mediante a visão política de cada um.

A visão mais voltada a esquerda, vai entender a fome, por exemplo, como um complexo problema gerado pelas desigualdades sociais e a concentração de renda gerada pelo sistema capitalista neoliberal vigente.

A visão mais voltada a direita, vai entender a fome, por exemplo, como uma questão mais individual, relacionada ao esforço de cada pessoa, pois considera, em última instância, que todos os seres humanos competem em igualdade de condições, vencendo sempre o mais capacitados e o mais fortes. Segundo essa visão, o sucesso, que normalmente se traduz em ter dinheiro e poder, são reflexos da meritocracia, ou seja, os louros colhidos pelo esforço individual.

Segundo o olhar da esquerda, a meritocracia é uma mera ilusão, uma vez que as condições de competição em condições de igualdade não existem, pois não dá para assumir que dois indivíduos, um proveniente da favela, fruto de uma família desestruturada, que teve que trabalhar desde muito cedo,  que mal se formou no ensino regular e foi jogado no mercado de trabalho, com baixa capacitação técnica, tem as mesmas chances de competição de um outro indivíduo, proveniente de uma família estruturada, que só se ocupou dos estudos, frequentou uma faculdade renomada e, só depois disso foi trabalhar, muitas vezes, assumindo um negócio de família.

Diante disso, as soluções propostas também serão muito diferentes e isso se aplica para qualquer questão que envolva um problema de ordem social.

A esquerda critica a concentração de renda, pois para que haja um super rico, muitos super pobres necessariamente precisam existir. A direita acha a concentração de renda algo normal e desejável, desde que não seja nas mãos de alguém que ascendeu socialmente, pois isso ela já não tolera com a mesma facilidade.

A esquerda não protege o bandido, mas ela olha para o criminoso e consegue entender que se aquela pessoa tivesse tido outras condições de vida, talvez ele não enveredasse para a criminalidade. Ela não nega que o criminoso deva ser punido, mas ela luta por penas justas, dentro de um devido processo legal e com condenações proporcionais aos atos praticados. A isso, dá-se o nome de direitos humanos, que na boca dos moralistas, erroneamente se transforma em defesa de bandidos.

A direita moralista é punitivista e prega que bandido bom é bandido morto, prega a pena de morte como castigo máximo para crimes mais graves, ou não, uma vez que também defende a ação de policiais que executam criminosos a sangue frio, sem o devido processo legal, sem a devida condenação e sem a determinação da execução da pena por parte do poder Judiciário, que é o único que pode determiná-la. Quando apontamos isso, somos chamados, mais uma vez, de defensores de bandidos.

A política deveria se ocupar em jogar luz a esses pontos, não em ficar discutindo pautas de costumes, apontando a corrupção desse ou daquele, afinal, corrupção é corrupção em qualquer situação e, uma vez comprovada, dentro do devido processo legal, que o réu seja julgado, condenado e pague sua pena. Não se trata de defender bandido, se trata de garantir os direitos legais a todos os cidadãos, inclusive dos que negam esse direito aos outros.

A política deve defender a independência dos poderes, pois a cada um competem prerrogativas próprias. A esquerda defende isso a ferro e fogo, enquanto a direita moralista, por vezes, relativiza de acordo com o réu.

A esquerda entende que as desigualdades sociais não são causas naturais, não podem ser encaradas como normais e que a correção delas passa, necessariamente, pela consciência de classe, pois quando falta ao povo entender a sua origem e a sua condição social, este é facilmente seduzido por cantos de sereia, como os que estamos sendo alvos nos últimos anos, mentiras deslavadas que pregam que o fim dos direitos trabalhistas vão diminuir o desemprego, que precarização do trabalho é empreendedorismo, que a Justiça do Trabalho tem que acabar, pois é isso que impede o país de prosperar, entre tantos outros.

O trabalhador precisa entender que ele é reduzido a mera força de trabalho, descartável e que só tem valor enquanto for produtivo. Ele precisa ter consciência de que o seu corpo, como o de qualquer outra pessoa, vai decaindo com os anos de vida e que um dia ele não vai produzir mais nada. Nesse dia, segundo a política neoliberal vigente, esse trabalhador estará relegado à própria sorte, pois o Estado não terá o papel de lhe assegurar as mínimas condições de sobrevivência.

Ao contrário, ainda vão culpá-lo por não ter conseguido se organizar financeiramente e não ter feito sua reserva para o fim da vida. Mas de que forma o trabalhador precarizado pode fazer algum tipo de reserva se ele sequer consegue comer?

Como fazer uma reserva para ter uma velhice tranquila se o trabalhador tem que pagar aluguel, plano de saúde, educação e tudo mais, pois esse mesmo Estado, que vai desampará-lo na velhice, já renuncia aos cuidados que são de sua competência, terceirizando  tudo?

Enquanto esse trabalhador precarizado está na ativa, ele não pensa nisso e vai vivendo, até que, por uma desventura, ele venha a ter algum problema de saúde que o impossibilite de continuar trabalhando, ou então, que por consequência normal da vida, ele envelheça e perca a vitalidade. Mas aí será tarde.

A esquerda prega que todas as pessoas deveriam poder usufruir dos bens que produzem, ao que somos ridicularizados pelo fantasma do socialismo e comunismo, completamente distorcidos e descontextualizados.

Não lhe parece lícito que se você trabalha numa construtora e constrói casas e prédios a vida toda, que você também tenha o direito de ter um teto seu?

Não lhe parece normal que se você trabalha numa montadora de veículos, que você também possa ter o seu veículo, para num final de semana, com sua família, poder usufruir do seu merecido descanso?

Não lhe parece aceitável que se você trabalha para a Apple, você possa ter um iPhone, ou ainda que não trabalhe lá, mas que tenha esse desejo e possa realizá-lo sem ser taxado de comunista de iPhone? Por que os bens de consumo devem ser privilégios de uma pequena parcela da população? Pense!

Tentamos jogar luz a essas questões, que são sufocadas por distorções propositalmente plantadas, para que você não perceba sua incapacidade de poder aquisitivo, enquanto o fruto do seu trabalho e do seu esforço vão se concentrando no bolso de poucos empresários e financistas, que não produzem nada e vivem de explorar o seu suor, enquanto você e sua família passam necessidades ou sobrevivem com o mínimo necessário.

A classe privilegiada da nossa sociedade, muito bem representada pela direita conservadora, só quer manter os seus privilégios. Ela tem horror ao pobre ter as mesmas condições sociais e econômicas que ela tem. O fantasma do comunismo é usado para perpetuar os seus próprios interesses elitistas, pois ao vender esse fantasma, a elite garante os seus próprios benefícios, enquanto nós, povo, somos cada vez mais massacrados.

A direita conservadora e neoliberal não tem problema com a corrupção, pois essa é uma questão menor, lembre-se, ela é de cunho moral e não político. O que o neoliberalismo e a direita conservadora não toleram é a igualdade social, é o direito do trabalhador ter condições de ter seus bens de consumo, sua vida digna, com o conforto que todo trabalhador merece ter.

Ela zomba da esquerda ao dizer que somos socialistas e comunistas, mas que queremos conforto, bons vinhos, boa comida, viajar e que isso é contraditório. Não há nenhuma contradição, pois lutamos é exatamente para que todos tenham o direito a esses bens, queremos socializar o que é bom. Quem gosta de dividir miséria não é a esquerda, mas sim a direita conservadora, que quer tudo somente para si. Ser de esquerda não é fazer voto de pobreza, isso é outra coisa!

Essas são discussões que dificilmente você vê nos embates das redes sociais. Esses são temas não pautados em debates e palanques políticos, pois por serem a causa do problema, eles são sufocados pelas pautas moralistas e de costumes, que funcionam como o bobo da corte, como o palhaço no picadeiro, que fica distraindo o povo, tirando o foco das questões que realmente importam, fazendo com que os semelhantes se matem por razões corriqueiras, enquanto as complexas questões sociais não são discutidas, enquanto o povo não é conscientizado do seu papel e do seu poder.

Jogam a ideia de que “políticos são todos iguais” para que você compre essa mentira, mas eles sabem que não são, tanto é que só um tipo de político interessa a eles e sempre são os conservadores neoliberais, que trabalham em prol de manter o capital nas mãos de poucos. Se políticos são todos iguais, como nos vendem, qual o problema de um político da esquerda ser eleito, afinal, não são iguais?

Essa é a luta da esquerda, é por isso que sou esquerda, é por isso que sempre serei esquerda. Meu papel não é discutir pauta de costumes, não estou nem aí para o que o indivíduo faz na sua intimidade, pois isso uma questão de foro íntimo.

O que me interessa é lutar para garantir a esse indivíduo as mesmas condições sociais que devem ser garantidas a qualquer pessoa. Se ele transgrediu alguma lei, ele, isoladamente, que responda por isso, mas eu não posso achar aceitável que toda uma sociedade seja subjugada e penalizada por conta dos atos morais e de costumes, ditados, normalmente, por quem menos tem moral.

Ser de esquerda não é comer criancinhas, mas garantir que todas as criancinhas tenham o que comer, afinal, é muito hipócrita brigar contra o aborto e pelo direito à vida, mas pouco se importar depois que essa vida se estabelecer.

O direito à vida deve se estender do nascimento à morte e não somente enquanto feto, dentro do útero materno. Ou você defende a vida em todas as suas fases, ou você só é um moralista hipócrita.

Entendo isso como ser de esquerda e isso não me torna melhor do que ninguém, pelo contrário, isso me gera um peso muito maior, pois ao invés da visão egoísta, de me preocupar só comigo mesmo, carrego um pouco do peso do mundo.

Antes de criticar a esquerda, entenda o que é ser esquerda e depois decida ao lado de quem você vai lutar a batalha da vida, se é como um soldado valioso, junto a um exército que jamais te abandonaria, ou se é ao lado de alguém que só te usa como escudo para garantir a própria vida.

Ser esquerda não é fácil, pois é lutar contra todo um sistema constituído, é lutar contra poderosos que convencem os iguais a se atacarem, por exatamente os fazerem acreditar que não são iguais, por lhes venderem a ilusão de que são diferentes, são vencedores, são especiais, são parte da elite, coisa que nunca serão.

Se você vende seu trabalho, se você vende seu serviço, se você recebe salário, ainda que de 30, 50, 100 mil reais, você não é rico. Você pode ter uma condição confortável, relativamente privilegiada, mas rico você não é, pois ricos não sabem o que é salário, não se preocupam com contas, não se importam de gastar o que você ganha num ano em um jantar ou num capricho.

Se você não está do lado dos que não se preocupam com isso, portanto, dos verdadeiramente ricos, tenho péssimas notícias para você, mas você só é um peão útil dentro do tabuleiro de xadrez, mas você nunca será um rei ou uma rainha, ainda que ande que pelo mesmo tabuleiro.

Ser esquerda é lutar incessantemente para trazer essa consciência. Levamos tanta porrada que cansa, bate desânimo, dá vontade de jogar tudo para o alto e deixar que cada um lute por si, mas aí você lembra um dia você adquiriu essa consciência, que você entendeu seu papel social no mundo, você se dá conta de que é de esquerda e que desistir não é uma opção para você.

Isso é ser de esquerda, o resto são histórias que inventaram para que você não seja de esquerda.

 


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