Como é do conhecimento de alguns, recentemente eu perdi meu pai e estou vivendo meu processo de luto, ou ao menos, tentando viver.
Depois de um sonho que tive na noite passada e que acabou me fazendo passar o dia pensando nessa perda, meus pensamentos divagaram para longe e me lembrei de quando eu era criança. Acredito que muitos dos que estão lendo vão se lembrar do que vou falar.
Antigamente, falando pela cidade onde cresci, uma cidade pequena e interiorana, era comum quando uma pessoa da família morria, que um certo ritual fosse cumprido. As pessoas usavam preto por um longo tempo, creio por um ano, para que todos soubessem que ela estava de luto, tanto é que, não raro, eu que sempre gostei de roupas pretas, quando delas estava vestido, sempre alguém logo perguntava: está de luto?
Outra coisa bastante comum era o fato de não poder ligar nem televisão e nem rádio, em respeito ao falecido. Além disso, havia um certo ritual de rezas na casa do falecido, sendo que, logo após o falecimento, não me recordo muito bem, mas creio que por volta de 3 a 5 dias, esses rituais eram diários. Os parentes e vizinhos se reuniam e rezavam o “terço”.
Sem entrar no mérito da questão, se esses rituais eram exagerados ou não, o fato é que as famílias enlutadas tinham um tempo para viver o seu luto. Havia toda uma preparação que possibilitava expressar a dor, o sofrimento e receber o afago necessário, que poderia vir na forma de uma oração em grupo, de um sinal de respeito por uma pessoa vestida de preto ou pelo tempo em que a falecido ou falecida era reverenciado entre os seus.
Toda pessoa que passa por um processo de perda precisa de um tempo para processar essa perda, precisa de um tempo para chorar, sentir a sua dor e, com isso, se fortalecer para seguir seu caminho.
O luto é um processo tão sério que a psicologia dedicou a ele todo um estudo das suas fases, buscando com isso compreender cada pessoa e dar a ela o suporte psicológico e terapêutico necessário, considerando que cada pessoa sente e sofre o luto de forma distinta, mas é fato que todos sofrem com ele, exteriorizando ou não esse sofrimento.
E atualmente, com toda modernidade e avanço da sociedade, como anda o processo do luto?
Eu mesmo respondo, ele praticamente não existe mais. Até mesmo o direito de chorar os nossos mortos, nos foi retirado pelo capitalismo desenfreado, que não consegue tolerar nenhuma franqueza, nenhuma perda, ainda que momentânea, da capacidade produtiva dos escravos do sistema.
A grande maioria das empresas fornecem ao trabalhador, que perdeu um ente próximo, não mais do que três dias de “folga”, ou seja, a depender do horário do falecimento, você tem um pedaço de um dia, o próximo dia, onde normalmente ocorre o sepultamento e mais um dia, onde você pode se recuperar e se restabelecer para voltar produtivo e sorridente no dia seguinte, afinal, ninguém tem nada a ver com a sua perda.
A rotina de todos nós, trabalhadores desse mesmo sistema, é pesada, é desgastante e não nos permite um tempo para reflexão ou introspecção. Somos forçados a produzir, afinal, tempo é dinheiro e o mundo não para.
Para manter esse sistema, afinal, precisamos dele para nossa sobrevivência, sufocamos nossos sentimentos, engolimos nosso choro e fingimos estar tudo bem, até porque, passados dois ou três dias, raros são os que ainda se lembram de perguntar como você está. Protocolarmente respondemos com um “tudo bem e com você?” e seguimos, fingindo para nós mesmos que realmente está tudo bem.
Estou aqui pensando que, desde o início da pandemia, vivemos um luto contínuo, ao mesmo tempo que não podemos sentir esse luto. Durante esses dois anos e alguns meses de covid, quantas pessoas próximas perdemos? Eu perdi amigos de longas datas, colegas e parentes próximos e dificilmente vamos encontrar alguém que não perdeu, ao menos uma pessoa, durante esse tempo.
Durante a pandemia, para piorar um pouco mais, sequer pudemos nos despedir dos nossos mortos, pois o ritual do velório não era permitido e isso faz com que nosso cérebro se recuse a registrar aquela perda. Particularmente, ainda mantenho a impressão de que se eu ligar para a casa da minha tia, ela vai atender ao telefone.
Tudo isso somado a falta de tempo para vivenciar a dor, torna o quadro geral muito grave, tanto é que o número de pessoas com depressão, entre outros transtornos psicológicos, nunca foi tão alto.
Um episódio que me marcou foi a perda de um primo, em 2009, vítima de um acidente doméstico estúpido, mas que lhe retirou a vida no auge da juventude. Me lembro que na época eu lecionava numa faculdade e assim que recebi a notícia, entrei em contato com o meu coordenador, expondo a situação e a resposta que recebi foi curta e grossa: “preciso de você aqui hoje”.
Isso foi em março de 2009, no entanto, em menos de seis meses antes, eu já tinha perdido meu avô, meu filho e minha mãe, então, mais aquela perda não era somente a perda de um primo, que por si só, já seria desgastante, mas ela representava o reavivamento dos outros três lutos ainda muito recentes, mas me foi negado esse direito e eu lecionei “normalmente” a noite toda e, depois de cumprir meu horário, segui para o velório. No outro dia, após o enterro, também retornei para as atividades “normalmente”.
O delírio capitalista pela sede de dinheiro e poder nos desumaniza. A despeito de produzir, somos equiparados a máquinas desprovidas de sentimentos, a meras engrenagens numa grande linha de produção, mas a única coisa que esse sistema realmente produz são pessoas cada vez mais desiquilibradas, infelizes e que, por sua vez, são cada vez menos produtivas.
É o paradoxo dos tempos modernos, a pressão pela capacidade produtiva só gera falta de produção, pois nenhum ser humano consegue produzir com qualidade, se não está emocionalmente bem.
O sistema consumista desenfreado se recusa a aceitar que somos humanos, nosso corpo, por sua vez, se recusa a aceitar que somos máquinas e seguimos nesse jogo de insanidade, não enterrando nossos mortos, ao mesmo tempo que vivemos enterrados em sofrimentos.