Reflexões de quarentena

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Decidi escrever esse texto como uma forma de tentar organizar as próprias ideias, pois ao longo desses últimos dias, se tem uma coisa que está a cada vez mais difícil é o entendimento do momento pelo qual passamos.

Confesso, já tive todos os tipos de pensamento, dos mais otimistas aos mais pessimistas. Já tentei ver o lado bom, já chutei o balde, já tentei me equilibrar, já mandei tudo para o ar e vou te dizer, continuo na mesma até agora.

Em momentos de grande tensão, não costumamos raciocinar com clareza e esse é um desses momentos, no entanto, algumas coisas me chamam a atenção, pois são falas comuns em conversas com várias pessoas, de várias áreas e de vários lugares.

Uma dessas falas é a de que esse momento será de grande transformação para toda a humanidade, pois diante de tantas perdas e sofrimentos, vai ser impossível que não aprendamos nada.

Em partes, eu concordo, mas meu otimismo não me permite passar da página dois. O que eu acho é que toda essa dificuldade vai trazer mudanças sim, vai reforçar, em quem já tem um senso de justiça e de humanidade, a necessidade de se fazer cada vez mais pelo próximo. Isso já é perceptível e basta olhar na quantidade de ações sociais que estão sendo desenvolvidas, mesmo em meio ao caos.

As pessoas que já são predispostas ao bem, vão sentir que esse sentimento vai aflorar cada vez mais, por outro lado, também não podemos deixar de citar o lado obscuro de boa parcela da população, que vive um momento sombrio, denso, onde todos os sentimentos baixos estão igualmente sendo aflorados.

Vivenciamos cenas deploráveis, que escancaram o que existe de pior no ser humano, que nega o óbvio, a ciência, o conhecimento consolidado e, no sentido oposto, compactua com a mentira, com o oportunismo, com o obscurantismo e zomba de tudo, inclusive da morte de outros seres humanos, da dor de famílias  que sequer estão conseguindo se despedir dos seus mortos.

Essas pessoas, ao menos penso eu, não vão mudar. Elas são o que são e todo o contexto que vivenciamos apenas propiciou um ambiente fértil, onde ela se sentiu muito à vontade para extrapolar aquilo que ela sempre foi, mas que exatamente pela falta desse terreno propício, era reprimido. Parto do pressuposto de que as pessoas não pioram, portanto, não acredito que todos esses monstros que hoje saíram dos armários, até ontem, eram pessoas boas, equilibradas e sensatas, mas que agora se transmutaram.

Não eram, nunca foram e não será nessa vida que serão.  Não é a primeira vez que a humanidade passa por uma situação semelhante e basta olhar para um passado, nem tão distante assim, quando o nazismo foi apoiado por milhares de pessoas.

O que aconteceu na época do nazismo, em partes, revivemos agora. Há um cenário político e social favorável para que os monstros sejam soltos e eles estão saindo, sem nenhum pudor e sem nenhum resquício de vergonha, pelo contrário, parece-me que virou motivo de orgulho ostentar a maior crueldade possível.

Não vai ser a pandemia que vai nos transformar em bons ou maus, isso é tão somente uma criação da nossa mente, tentando achar algo de positivo em meio ao sofrimento. Se isso fosse verdade, nosso mundo hoje seria o próprio jardim do Éden, pois já passamos por peste negra, cólera, tuberculose, varíola, gripe espanhola, tifo, AIDS, além de várias outras doenças que, igualmente, ceifaram milhares de vidas e o que temos hoje? Um mundo melhor? Não, temos um mundo onde as pessoas pegam um caixão e dançam em plena Avenida Paulista, tripudiando da dor de 1532 famílias, que até o dia de hoje, 14/04/2020, perderam um ente querido e sequer puderam dar um último adeus.

Essa parcela raivosa da nossa população não vai mudar em nada. Nem mesmo a morte de um dos seus, pois já existem relatos de famílias brigando com os médicos, por não aceitarem a causa mortis dos atestados de óbitos, ou seja, a negação é tão grande, que sequer o luto elas se permitem sentir. Como esperar que elas mudem?

Minha única esperança é que as boas ações, assim espero, se multipliquem e consigam estancar um pouco essa onda negativa. Temos a chance de tentar anulá-los, mas não nos enganemos, pois eles não vão sair melhores dessa situação. Temos a chance de tentar mandá-los de volta aos armários, mas é só isso.

Outro questionamento comum, entre as diversas pessoas com quem estou mantendo contato, refere-se exatamente a esse comportamento raivoso, agressivo e de menosprezo a vida.

A minha percepção sobre essas pessoas resume-se a dois sentimentos, que são o egoísmo e a negação.

Egoísmo por não se importarem com nada, senão com elas mesmas, sendo muito comum ouvirmos algo parecido com: “ah, mas eu sou jovem, sou saudável, isso não vai me atingir”.

Pode ser que não mesmo, mas esse é um pensamento bastante egoísta, pois o que pode não atingir a ela, pode matar alguém muito próximo, mesmo um familiar, pois ela pode ser o agente transmissor e o seu próximo pode não ter as mesmas condições, vindo, inclusive, a morrer.

Mas isso importa ao egoísta? Claro que não! Se ele estiver bem, o outro não é nada, não é ninguém, não tem valor algum, portanto, vai ser somente mais um número em meio a uma grande massa estatística de dados.

Por sua vez, a negação releva um transtorno psicológico bem acentuado e digo isso baseado na quantidade de pessoas comuns, sem grandes recursos financeiros, algumas até mesmo em situação financeira muito complicada, mas que zombam e menosprezam dos menos favorecidos, nutrindo sentimentos de raiva por qualquer ação que possa trazer um mínimo de dignidade, como as ajudas sociais.

O discurso dessas pessoas reflete um comportamento interessante e muito semelhante e que gira em torno do “eu preciso trabalhar porque ninguém paga as minhas contas”, ou “eu vou trabalhar porque não sou vagabundo para ser sustentando pelo Estado”, entre outras variações sobre o mesmo eixo temático.

Ninguém, na atual situação, exceto realmente os bem afortunados, que são raríssimos, diga-se de passagem, está a salvo. Todos nós estamos correndo riscos, eu estou, você está e qualquer trabalhador está.

A situação que vivemos não é de normalidade, portanto, nenhuma lógica aplicável em situações normais é válida. É claro que eu temo pelo que pode me acontecer, é claro que eu temo pelo que pode acontecer com os que amo. Eu sei que muitas famílias vão passar por situações muito difíceis e isso pode afetar a qualquer um de nós.

No entanto, diante da situação atípica ou anormal, o que deveria prevalecer é o nosso instinto de sobrevivência, tal qual acontece na guerra.

Assim sendo, o que justifica o comportamento dessas pessoas, que mesmo sem recurso ou patrimônio algum, se colocam na posição de capatazes e saem disparando seus chicotes contra seus pares?

Arrisco dizer que a negação daquilo que ela mesmo é, em resumo, da não aceitação da sua própria condição social e, por não se aceitar, em seu inconsciente, ela se espelha numa realidade paralela, criando identidade com os ricos, com os detentores dos grandes meios de produção, das grandes fortunas do mundo.

A pessoa que tem um pequeno comércio, num bairro qualquer da cidade, se equipara, na sua mente fantasiosa, ao proprietário de uma grande multinacional do segmento varejista, pois ela não aceita sua condição de recursos limitados, portanto, para se sentir poderosa e se autoafirmar, ela passa a levantar a bandeira dos grandes afortunados, numa tentativa insana de ser aceita num grupo a que ela não pertence.

A raiva, segundo ainda minhas interpretações, provém tanto da percepção de que ela nunca fará parte dessa parcela extremamente pequena dos afortunados, embora se rasteje para conseguir algumas migalhas da atenção destes, mas também, da frustração por se encontrar entre a grande maioria da população, que luta diariamente para sobreviver. Ela não aceita essa realidade e quer, de qualquer forma, fazer parte da outra parcela, a dos afortunados.

Posso estar totalmente enganado, mas minha percepção é essa e esse raciocínio explica, ao menos para mim, o tal fenômeno do “pobre de direita”, que passou a defender os interesses dos ricos, em detrimento dos seus próprios interesses e até mesmo da sua própria vida.

Ele se sujeita a sofrer as consequências perversas de um sistema injusto, mas acha melhor isso do que se reconhecer como parte da população menos abastada, ou numa linguagem simples, dos pobres desse mundão de meu Deus. Ele prefere se humilhar e implorar por migalhas do que lutar pelo que é seu por direito.

Essa é a negação a que me refiro. Não é a negação do problema social, não é a negação da pandemia, não é a negação de nada externo, mas sim, a negação da própria vida, a negação daquilo que ele é e, diante disso, a negação de qualquer outra coisa que tente destruir o seu castelinho de areia.

As lutas travadas nas redes sociais, das quais em muitas eu participei, também só nos deixam claro que para nada servem. Não servem pelos motivos aqui já expostos, ou seja, quem já tem uma visão mais humanista, se desespera e quer salvar o mundo, por outro lado, os negacionistas continuarão lutando contra todos, negando qualquer tipo de ciência, de razão e de lógica, pois isso em nada importa a eles, não sendo, nem de longe, a sua preocupação maior, que em síntese, consiste em pertencer a uma classe social privilegiada, que ele nunca alcançará.

Essa guerra somente nos desgasta, nos exaure as forças, portanto, vamos deixá-la de lado e concentrar nossos esforços na nossa própria sobrevivência e na dos que nos são caros. É o que podemos fazer, nada mais.

Passado esse momento crítico, veremos o que pode ser feito. Sem dúvida alguma que poderemos tirar grandes lições de tudo isso, mas não sejamos ingênuos, porque o mundo não vai simplesmente despertar melhor porque algumas milhares de pessoas morreram.

Vou parafrasear o grande mestre Paulo Freire, quando ele diz que a Educação não transforma o mundo, a Educação muda as pessoas e as pessoas mudam o mundo.

Pois eu acredito que o sofrimento também não transformará o mundo, o sofrimento pode transformar as pessoas, reforçando características já existentes, tanto para o bem, quanto para o mal e a minha esperança, como já disse, é que as boas ações possam estancar essa onda perversa que hoje se alastra.

Termino essa reflexão com uma citação de Francisco de Assis, que muito admiro: “Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado, resignação para aceitar o que não pode e sabedoria para distinguir uma coisa da outra.”

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