Admirável Gado Novo
Sim, você já viu o título desse texto sim e é isso mesmo que você está pensando, é a letra da música do Zé Ramalho. Escolhi essa letra, pois vejo que ela reflete boa parte daquilo que penso e também, muito da forma como nos comportamos.
Uma das frases que mais me chama atenção nessa letra é : “Vida de gado, povo marcado, povo feliz”. Chama-me a atenção pela passividade da nossa parte, pelo nosso comportamento realmente bovino em boa parte do tempo. Somos um povo marcado, mas somos felizes. Será?
Marcados certamente, agora, felizes, tenho lá minhas dúvidas, mas a vida da grande maioria é sim, uma vida de gado.
Passivamente, todos os dias caminhamos para nossos pastos… e como pastamos! Algumas coisas são engraçadas e às vezes me lembro de algumas frases que minha mãe falava. Quando alguém estava passando por dificuldades, dizia ela em toda sua simplicidade que “o fulano estava pastando”, ou seja, estava numa situação não confortável. Não sei se isso é válido para todo o Brasil, mas em nossa região, dizer que alguém está pastando, significa que essa pessoa não está bem. Se pastar não é algo bom, então porque insistimos em pastar todos os dias?
Vamos fazer uma comparação: como os gados vivem? Normalmente, no período noturno, ficam confinados num local “acolhedor”, onde podem dormir. Na manhã seguinte, geralmente bem cedo, são liberados pela pessoa que deles cuida e que, normalmente, se utiliza de alguns recursos para fazer o animal sair do seu conforto, como algumas espetadas, por exemplo. O animal sai então para seu pasto e logo cada um vai para um lado diferente, buscar o necessário para sua subsistência e, nessa condição, passam geralmente o dia todo.
Ao final da tarde, novamente o “cuidador” os chama de volta, geralmente andam em bando, grudados uns nos outros, e voltam, passivamente para suas “casas”, onde poderão gozar do merecido descanso até o dia seguinte, onde toda a rotina recomeça e assim, sucessivamente, dia após dia, mês após mês, ano após ano, até que um dia, quando estão já bem “gordinhos”, são sacrificados para satisfazer às necessidades de outras pessoas, com as quais normalmente, não possuem nenhuma ligação, nunca ouviram falar ou sequer viram, mas suas vidas agora são sacrificada para o sustento dessas demais vidas.
Perceberam alguma semelhança?
Sim, meus caros, a grande maioria de nós não passa de simples gados pastando e, assim como os gados, vez ou outra somos marcados. O gado é marcado com ferro e fogo, para dizer a quem pertencem. Nós recebemos um crachá e uma carteira de trabalho, algo bem mais civilizado, sem dúvida, mas que continua nos marcando e dizendo a quem pertencemos e que, na maioria das vezes, não temos poder de decisão sobre nossas próprias vidas.
Mais uma frase que acho fantástica: “o povo foge da ignorância, apesar de viver tão perto dela, e sonham com melhores tempo idos, contemplam essa vida numa cela..”.
A maioria de nós diz fugir da ignorância, mas por outro lado, temos e sentimos uma atração fatal por ela. Sempre esperamos que alguém nos diga o que fazer, que nos apontem um caminho, que falem aquilo que gostaríamos de ouvir, que expressem aquilo que queríamos falar e não conseguimos. Em resumo, pedimos o tempo todo para que nossa ignorância não seja retirada. Como professor, escuto muitas coisas que me preocupam muito. A maioria dos alunos hoje (universitários, diga-se de passagem) continuam agindo dessa mesma forma, pois não querem pensar. É comum ouvir “professor, não dá para deixar isso mais fácil”, ou, “isso não tem importância para minha formação”. Confesso que isso me assusta, pois falar que um conhecimento, seja qual seja, não é importante é, no mínimo, preocupante.
Para mim, saber não ocupa espaço e conhecimento nunca é demais. Talvez eu é que esteja maluco, vá saber…
Um outro grande problema que percebo hoje, na grande maioria, é que nos recusamos a viver o presente. A angústia do ser humano é tão grande que ele não permite se enxergar, não se permite um minuto de silêncio, pois isso o faria entrar em contato com seu verdadeiro eu, e isso é demais para a grande maioria. Observe se você não faz isso também. Normalmente vivemos de lembranças de bons momentos ou da perspectiva de um futuro melhor, mas cadê o hoje?
Lembrar bons momentos é legal, mas estes já foram e não voltaremos a eles e o futuro só será diferente e lindo da forma como imaginamos, se hoje fizermos a diferença.
Hoje é cada vez mais comum encontrar e conhecer pessoas que falam demais, que não ouvem e isso é facilmente compreensível pela psicologia. Não há espaço dentro de todo o vazio que nos constitui. Criamos uma máscara, uma barreira, falamos demais para não dar espaço ao outro. Cidades e casas cada vez mais iluminadas tentam disfarçar nossa escuridão interior.
Quantas marcas acumulamos ao longo de nossas vidas? “Povo marcado, povo feliz”. Politicamente falando, somos marcados pelo políticos corruptos, pelas falcatruas de toda ordem, lemos todos os dias notícias sobre novos escândalos, mas continuamos nossa vidinha tranquila, pastando e esperando o aconchego de mais uma noite e, no outro dia, recomeçamos tudo novamente, até que em algum momento, nossa vida também será sacrificada para satisfazer aos interesses de alguém que nunca vimos, alguém com quem nunca conversamos, mas que julgou que sua vida era mais importante que a nossa e o que é pior, nós permitimos.
Quando isso acontece, passa-se a viver “a única velhice que chegou, demoram-se na beira da estrada, e passam a contar o que sobrou”…
Admirável Gado Novo – Zé Ramalho
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