Em tempos em que só se fala em financeirização, aumento de lucro, diminuição de despesas e cortes de benefícios sociais, trago uma reflexão mais voltada para o lado humano.
Hoje, ao sair para almoçar, me deparo com uma cena que me destroçou o coração. Um homem deitado, todo enrolado num trapo, no que imagino, era seu cobertor.
Era por volta das 12:30 horas e, diante dos olhos de todo mundo, no bairro mais nobre da cidade, em frente a escritórios, consultórios e até mesmo uma delegacia de polícia, esse homem estava lá, esquecido pelo mundo, invisível aos olhos da grande maioria, que corre apressada e preocupada com tudo o que tem para fazer.
Provavelmente ele tinha fome, entre tantas outras necessidades que nem consigo imaginar, mas estava lá, deitado, todo enrolado, tal qual um animal abandonado.
A vida de todos seguiu, inclusive a minha, mas aquela imagem ainda está na minha retina e eu a registrei, talvez até como uma certa forma de autopunição, para que eu não me esquecesse tão facilmente dele, pois enquanto estou agora, confortavelmente instalado e escrevendo, provavelmente ele continua na rua, com fome, sendo hostilizado, desprezado e ignorado.
Fico me perguntando o que foi que fizeram com a humanidade. Para onde foi o sentimento de compaixão? Quando foi que nos tornamos tão insensíveis e cruéis?
Como podemos olhar para uma pessoa nessas condições e achar que isso é normal? Como pode um cidadão, Ministro da Economia, dizer que o pobre é pobre porque não sabe investir?
Isso me causa um misto de revolta e nojo que nem sequer consigo expressar. Precisa ser muito covarde e mesquinho para falar uma coisa dessas e dormir tranquilamente!
Será que nossos governantes sabem o que é a fome? Será que sequer já se imaginaram numa situação minimamente parecida?
E a tal meritocracia? O que será que esse homem fez para merecer uma vida tão dura e sem um pingo de dignidade? Será justo? Será que ele teve condições de competir em pé de igualdade com o cara que se formou nas melhores universidades, mas por pura falta de tato financeiro, acabou nessa situação tão deplorável?
Questiono tudo isso sim, aliás, ando numa fase em que questiono até as minhas próprias convicções, pois tem horas que já não sei mais o que é real e o que é parte de uma ficção que plantaram em minha cabeça e incorporei como realidade.
A única coisa que eu sei é que não vou ter paz nunca, porque enquanto cenas como essas ainda fizerem parte do cotidiano, minha consciência não me permitirá o sossego.
Tem uma música, da Legião Urbana, que para mim é um hino e que se encaixa perfeitamente nesse contexto e a sua letra não sai da minha mente desde a hora do almoço. A música é Metal Contra as Nuvens e o trecho que pulsa na minha cabeça é o seguinte:
“É a verdade o que assombra
O descaso que condena
A estupidez o que destrói
Eu vejo tudo o que se foi
E o que não existe mais
Tenho os sentidos já dormentes
O corpo quer, a alma entende
Esta é a Terra de ninguém
Sei que devo resistir
Eu quero a espada em minhas mãos”
A verdade assombra e a de hoje veio como um soco no estômago. O descaso condena e esse homem é um belo exemplar do descaso de todos os governos, mas também nosso, que o condenou a uma vida de condições sub-humanas.
A estupidez destrói e está destruindo a cada dia mais! A estupidez do lucro acima de tudo, da economia a qualquer custo, do desprezo ao ser humano em detrimento dessa maldita financeirização que está acabando com o mundo!
E, aos poucos, vamos vendo tudo o que se foi, tudo o que já não existe mais e o que, em breve, irá desaparecer. Provavelmente vamos fazer parte dessa estatística.
Os sentidos estão dormentes e a paz é algo que há muito não sei o que é, pois é impossível estar bem, sabendo que tantos passam fome. Vamos vivendo, até porque nosso instinto de sobrevivência se encarrega de desviar nossas atenções e focamos em amenidades para suportar essa carga cada vez mais pesada, mas é impossível ser plenamente feliz, aliás, arrisco dizer que é impossível ser minimamente feliz.
Nos tornamos a terra de ninguém e a cada dia vivido tenho mais certeza disso. Estamos relegados a própria sorte e salve-se que puder. A imagem que me veio à mente agora foi a do naufrágio do Titanic. Estamos todos a bordo, o navio afunda e os botes salva-vidas são insuficientes. Creio que nem preciso dizer quem é que vai morrer congelado e afogado, não é?
O que me mantém em pé, mesmo diante de tudo isso é a consciência de que preciso resistir. Precisamos resistir! Não, não me entrego sem lutar, nunca! Se tiver que morrer, que seja em combate, mas nunca de maneira covarde.
Enquanto eu tiver voz, enquanto eu respirar, seguirei berrando aos quatro cantos. Pode não ser muita coisa, mas será mais uma voz contra esse sistema que só gera desigualdade e permite que pessoas sejam tratadas como cadáveres em decomposição, embora continuem vivas.
Não podemos nos calar. Não podemos nos acomodar. Não podemos achar que tudo isso “é assim mesmo”, porque não é!
Essas pessoas, todas essas pessoas desvalidas desse mundão de meu Deus, precisam das nossas vozes para gritar por elas, pois elas já foram tão marginalizadas que até isso já lhes foi retirado e elas se tornaram invisíveis e mudas!
Diante disso, a omissão não é uma possibilidade!