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O Segundo Encontro – Religião

Nesse segundo e último encontro, sobre o tema religião, Orlando e Vitor iriam conversar sobre a fase final das religiões, a sua decadência e completa extinção do planeta. O fim das religiões culminou com outros fatores políticos e sociais e não se constituiu num fato isolado, mas sim, num conjunto de mudanças, caracterizando o fim de uma era.

Eles combinaram de se encontrar no mesmo local do dia anterior, após seus afazeres diários e assim o fizeram. Orlando chegou primeiro, por volta das 18 horas, já se acomodou no quiosque e foi preparando o ambiente. Vitor chegou cerca de 15 minutos após e, assim que chegou, deu um abraço afetuoso em seu avô e também se sentou. Ele tinha pensado sobre o  assunto o dia todo, tinha pesquisado algumas coisas e estava com a mente agitada, tentando entender e fechar os pontos. Ele tinha certeza de que a conversa seria muito produtiva e decisiva para esse entendimento.

– Nonno, terminamos nossa conversa de ontem com o senhor falando sobre o novo Papa, que começou uma revolução na Igreja. Como isso aconteceu?

– Meu querido, espero que esteja preparado, nossa conversa de hoje será forte, essa fase da humanidade foi muito triste, mas foi importante e, como sempre, no caso dos nossos antepassados, somente sofrimentos extremos faziam com que eles mudassem.

Vitor sequer piscava, sua respiração estava tranquila, demonstrando profunda imersão às palavras do seu avô, que continuou, sereno:

– Esse novo Papa começou a quebrar algumas tradições da Igreja, dogmas tão sedimentados e intrínsecos que nenhum outro, em qualquer situação, cogitou mudar. Ele começou com coisas pequenas, começou a mostrar um lado mais humano da Igreja. Pela sua própria formação religiosa, ele era uma pessoa que não se prendia muito aos bens materiais, era conhecido por pertencer a uma linha Franciscana, ou seja, seguidores de Francisco, que foi um dos santos mais abnegados, que renunciou a toda fortuna da sua família, para viver uma vida simples.

– Assim que ele assumiu o pontificado, já começou a demonstrar suas intenções, ele queria demonstrar ao mundo que o verdadeiro papel da Igreja era outro, era a simplicidade, a busca pela espiritualidade, mas as coisas não seriam simples e ele tinha plena consciência disso, tanto é que, em todas as oportunidades públicas, sempre pedia aos fiéis que orassem por ele. Ele sabia que seu antecessor havia renunciado por motivos muito diferentes aos que haviam sido publicados pelo Vaticano, sabia que ele havia sofrido uma grande pressão nos bastidores e, numa tentativa de se manter vivo, abdicou do seu cargo e se isolou num castelo, onde passou o resto dos seus dias recluso.  O novo papa, que assumiu o nome de Bernardo I, tinha plena consciência do seu papel e das dificuldades que enfrentaria.

– Como disse, desde seu primeiro dia já começou a demonstrar mudanças, abrindo mão do suntuoso quarto reservado aos Papas, passando a residir num quarto mais simples. Começou sua visita aos países através do Brasil, onde já quebrou vários protocolos, ficando junto ao povo, e, nas palavras dele, sem medo. Nessa época, o Brasil passava por uma onda de protestos, onde muitos manifestavam sua insatisfação pelas precárias condições humanas, pelos crimes políticos, exemplos de completa desordem por parte dos seus governantes, entre tantos outros pontos, mas não vou me ater a isso agora e abordaremos esse tema em outra ocasião, mas o fato é que, o papa, também já em uma nova postura, nada convencional para a época, disse que apoiava os manifestos e que jovens que não se manifestavam, que eram pacíficos, não o agradavam. Essa fala, vindo de um papa, foi bastante inusitada, mas isso foi só o começo.

– Esse mesmo Papa começou uma discussão sobre os homossexuais, que na época, pela completa ignorância do homem, eram recriminados, discriminados e não tinham apoio da maioria das instituições religiosas. Muitos desses homossexuais, pelo desespero em que se encontravam, pela negação do seu estado natural e pelos preconceitos da sociedade, viviam uma vida muito triste, eram pessoas que se escondiam, que negavam sua própria natureza. Você consegue entender isso, Vitor, alguém que passe toda uma vida negando aquilo que sente, pois faziam com que eles acreditassem que isso era errado! Você já imaginou o dano psicológico a que essas pessoas eram submetidas?  Infelizmente, muitos se descontrolavam a tal ponto, que se perdiam nas drogas, no consumo de bebidas alcoólicas e todos os tipos de substâncias que lhes tirassem, por momentos que fossem, da sua realidade difícil. Muitos chegavam a colocar fim à própria vida, num gesto supremo de desespero.

– Mas nonno, porque tudo isso acontecia?

– Isso e muitas outras coisas aconteciam pela ignorância humana, pelo preconceito. Isso aplicava-se aos homossexuais, prostitutas e todos aqueles que não fizessem parte do modelo padrão do ser humano, como se isso fosse possível, pois cada pessoa é única, dai o nome de indivíduo, mas o homem da época, com toda sua falsa sapiência, não respeitava esses preceitos. O ser humano hoje é respeitado na sua individualidade, nos seus sentimentos e nenhuma característica física ou emocional é considerada como um fator de anormalidade, mas nem sempre as coisas foram assim, meu neto, aliás, a história humana é repleta de horrores exatamente por essa não compreensão.

– Esse Papa, meu neto, começou a chamar essas pessoas, até então tratadas como aberrações da criação, de seres humanos, de irmãos e disse que não competia a igreja julgá-los, mas sim, entendê-los e apoiá-los. Inevitavelmente, isso gerou correntes negativas dentro da própria cúria e os bastidores da igreja sempre foram sórdidos. Havia muita podridão escondida. Na época, muitos religiosos eram homossexuais, muitas religiosas já haviam se prostituído, mas isso nunca foi aceito, aliás, a religião era considerada uma forma de sublimar esses sentimentos. Isso era mero discurso, pois sentimentos devem ser entendidos, trabalhados e modificados. Colocá-los de lado não resolve nada, apenas adia e potencializa sentimentos ruins, mas isso é um conhecimento que temos hoje, infelizmente, na época, as pessoas achavam que deixar de lado resolveria. Pelo contrário, isso somente potencializava sentimentos ruins, as pessoas não conseguiam reprimir o seu verdadeiro eu e então, acabavam se utilizando de um posto ou posição religiosa para cometer crimes sexuais e, o que é pior, contavam com o silêncio da Instituição religiosa, que naturalmente, sabia de tudo o que acontecia, mas se fazia de desentendida, negava, acobertava, portanto, era cúmplice desses crimes.

– Nonno, mas isso era muito sério! Como eles conseguiam fazer isso e nada acontecia?

– Vitor, sei que para você isso é complicado, mas as coisas  funcionavam assim, a Igreja tinha muita influência na política, nas Leis, e em todos os segmentos sociais. As vítimas se sentiam culpadas, pior que isso, às vezes esses monstros diziam que o que eles faziam era uma forma de purificar a alma dos pecadores.

– Não entendi, nonno. Por que pecadores?

– Chegamos agora a um ponto importante. O pecado, para eles, era uma forma de controlar os sentimentos e ações das pessoas, tudo aquilo que não seguisse os preceitos da Igreja era tido como errado, como pecado e, os seguidores daquela religião não tinham sequer o direito de questionar, pois eles alegavam que eram dogmas e dogmas não eram questionados, eram aceitos e pronto.

– Nonno! Deixa eu ver se entendi, eles impediam as pessoas de pensar?

– De certa forma sim, meu neto, é isso mesmo. O pecado era uma forma de impedir nossos ancestrais de pensarem e isso funcionou por séculos, por milênios. As pessoas eram coagidas a aceitarem, pois, caso não aceitassem, seriam punidas por Deus e, quando morressem, iriam para o inferno, como se fosse possível um sofrimento maior ao que elas já eram submetidas!

– Mas nonno…..

– Vitor, eu sei até o que você está pensando, mas era isso. As pessoas não tinham a menor ideia do que era a verdadeira vida, de que o controle do que acontecia ou não dependia somente delas, que não existia um ser supremo, que ficava do alto do seu trono, julgando ou condenando ninguém, as pessoas não sabiam que a única punição e castigo a que estavam sujeitos eram os seus próprios pensamentos e medos. O ser humano caminhou por esse caminho sombrio por muito tempo, ele se deixou influenciar, se deixou dominar por outros por muito tempo e, somente após muito sofrimento, eles aprenderam a pensar por si só, a assumir o controle da própria vida.

– Meu caro neto, todo ser humano é livre e isso é uma garantia universal. Você é o único dono e responsável pelo seu pensamento, pelas suas ações e você só sofre se deixar com que os outros assumam essa tarefa que é somente sua. Se você permitir que outros decidam sua vida, você não pode reclamar que as coisas não caminham do jeito que você quer, certo? Hoje, para nós, tudo isso nem é cogitado, as pessoas têm essa consciência, mas não foi sempre assim. As pessoas da época, também muito acomodadas a uma situação, gostavam que alguém estivesse sempre pensando por elas, gostavam que alguém dissesse o que elas deveriam fazer ou não, não queriam ter o trabalho de ser as autoras da própria vida, pensar, agir, tomar decisões, isso dava trabalho, fazia com que passassem da posição de simples executores do seu destino ao papel de construtores e, planejar e construir, dá muito mais trabalho do que simplesmente cumprir uma ordem.

– Esse conceito, Vitor, aplicava-se, não somente à religião, mas  a todas as situações da vida das pessoas da época, mas elas deixavam que isso acontecesse e demorou muito para que elas mudassem o padrão de pensamento e de ação. As religiões, todas elas, somente se aproveitaram dessa brecha.

– Mas, voltando ao assunto, esse Papa começou a quebrar esses preceitos, começou a pregar que os bens materiais não eram tão importantes e, num gesto que foi visto por muitos como loucura, começou a dividir os bens da Igreja, doando toneladas de ouro para organizações mundiais de combate à fome, pois acredite, enquanto a religião guardava uma fortuna em seu domínio, muitos fiéis morriam simplesmente por não ter o comer, por não ter água para beber. Você consegue pensar em contradição maior que essa?

– Quero deixar claro, que nós estamos focando, em nossa conversa, esse Papa, porque ele representou o início das mudanças, mas que essas práticas não se restringiam somente a Igreja tida como tradicional, era uma prática de muitas outras, que faziam um trabalho constante de manipulação dos seus fiéis, manipulavam a grande massa para dar o pouco que tinham enquanto seus pastores e dirigentes construíam impérios.

– Esse papa continuou quebrando muitos preceitos, mas ele sabia que tinha que fazer as coisas dentro de um tempo, que também não poderia, de uma única vez, mudar tudo, então, aos poucos, começou sua reforma. Ainda falando na riqueza da Igreja, um dos motivos da renúncia do seu antecessor foi um escândalo que envolvia o banco do Vaticano, que foi abafado e escondido de todas as formas. O novo Papa resolveu dar continuidade a uma investigação muito séria e descobriu muitos desvios de dinheiro, descobriu que a Igreja recebia muito dinheiro de fontes nada convencionais e aceitáveis, como a máfia, descobriu ligações políticas muito fortes com a Igreja e  o quanto uma instituição influenciava na outra, ou seja, a Igreja interferia diretamente na política e a política na religião, sempre tendo como objetivo  a obtenção de grandes somas de dinheiro e poder.  Tudo isso, aos poucos, foi revelado ao público e como as provas eram incontestáveis e contundentes, não haviam muitas opções a não ser assumir a culpa e, de alguma forma, se redimir das falhas.

– Nonno, e como foi a posição da Igreja, dos demais membros da cúpula nessa época?

– Ah, meu neto, isso foi um capítulo à parte. Certamente que a postura do Papa incomodou e mexeu com muitos poderosos da época, poderosos que tentaram de todas as formas silenciá-lo, mas ele não se deixou abater e sempre, em todas as ocasiões, convocava os fiéis a rezarem por ele para que ele tivesse forças para continuar. Nos bastidores da Igreja, muitas conspirações foram elaboradas, planos maquiavélicos para eliminá-lo, tentativas de manchar sua reputação, mas por algum motivo, nenhum desses fatos ganharam forças e todas as tentativas fracassaram e ele seguiu com suas transformações, assumindo posturas vergonhosas da Igreja, como no caso dos abusos sexuais e, como nunca antes feito, entregou todos os membros da Igreja envolvidos as autoridades legais. Religiosos do mundo todo foram presos e condenados por seus crimes. O Papa também admitiu a atrocidade que foram as chamadas “guerras santas”, a “santa inquisição”, que foram períodos sombrios da história da humanidade, admitiu que na verdade, o único objetivo da Igreja, com tudo isso, era consolidar seu poder, não somente religioso, mas financeiro e político e que esses eram fatos que o envergonhavam profundamente.

– Tudo isso demorou décadas, o Papa foi se cansando naturalmente, pois a idade também avançava. A Igreja, ainda nessa época, devido a todos esses fatos, começou a passar por um período de renovação, mas também de muitos ataques, que eram internos e externos. Fanáticos religiosos de outros segmentos repudiavam os templos religiosos, liderando ondas de ataques, depredações, saques. Muitas igrejas foram simplesmente destruídas, os objetos de valor e obras de artes roubadas, religiosos suspeitos de crimes começaram a ser assassinados brutalmente e esses eram fatos que afetavam o Papa Bernardo I, que sofria ao ver essas cenas tristes, mas no fundo ele sabia que sua postura tinha sido correta e que toda mudança profunda, pelo menos naquela época, sempre vinha acompanhada de sofrimento. Embora não aprovasse a violência que se instaurou, ele sabia que era um caminho sem volta, era uma dor necessária ao progresso de todas as pessoas. Com o passar dos anos, ele foi ficando cada vez mais fraco, suas aparições públicas foram diminuindo e ele foi saindo de cena, aos poucos.

– Nonno, mas e ai? Eu sei que quando um Papa sai outro tem que ser eleito para assumir. Como foi isso? O senhor mesmo disse que inúmeras conspirações já haviam sido feitas. Diante disso, eles não viram uma oportunidade de tentar reverter, de conseguir novamente o poder?

– Sim, meu neto, isso realmente ocorreu, mas precisamos entender outros pontos, a imagem da igreja tinha sofrido muitos abalos, o número de fiéis ao redor do mundo tinha diminuído consideravelmente, as pessoas, pelo menos boa parte delas, já não seguiam mais os mandamentos da igreja, mas não pense que isso foi porque elas já tinham entendido que não precisavam desse comando, mas sim, porque estavam num período de revolta, de crise existencial, de quebra de conceitos, mas ainda se sentiam perdidas. Esse fato é natural, pois ao longo de vários séculos, as pessoas se acostumaram a repetir sempre os mesmos gestos, a respeitar os mesmos conceitos, criaram regras e se acomodaram com essa situação e, de uma hora para outra, mudar tudo isso, sabemos que não era fácil. Os fiéis viram seus conceitos ruírem, suas crenças desmoronarem, mas ainda não sabiam bem o que fazer.

– Quando falo que as pessoas estavam com suas crenças e convicções destruídas, não falo somente pelo que já conversamos, mas porque ele também mexeu e desmistificou muitos dogmas da Igreja e um dos que mais abalou os fiéis foi o início da própria humanidade, pois a Igreja sempre pregou o criacionismo, ou seja, o homem foi feito por Deus e, a partir de Adão e Eva, toda a humanidade se fez.  Com toda a sua sabedoria, lucidez e lógica, ele começou a quebrar esses dogmas, mostrando ao mundo que essa visão era errada, ou pelo menos, incompleta, que Adão e Eva foram figuras metafóricas, mas não pessoas reais a partir do qual toda a humanidade se fez, mesmo porque, se assim o fosse, todos nós seríamos fruto de um outro pecado que a Igreja tanto recriminava, que era o incesto. Você concorda, meu neto, que se só existiram duas pessoas e essas pessoas povoaram o mundo, não havia outra forma de procriação senão entre seus próprios pares consanguíneos?

– Sim, nonno, sempre achei isso muito estranho e não entendo como os nossos ancestrais aceitaram isso tão pacificamente por tanto tempo, pois é algo tão ilógico, tão simples de ser compreendido.

– Vitor, tudo isso é muito simples agora, mas na época não era, as pessoas, como já falei, se deixavam dominar, não costumavam pensar, deixavam com que os outros pensassem por elas e aceitavam qualquer coisa, desde que isso não lhes desse muito trabalho. O processo de construção do conhecimento verdadeiro foi muito lento, mas creio que podemos dizer que o primeiro passo rumo a isso foi dado nessa época.

– O Papa continuou desmistificando outros dogmas, como por exemplo, a confissão, o celibato, entre vários outros. As explicações eram simples, mas até então, ninguém tinham pensado ou, por medo do pecado, sequer ter levando essas hipóteses. A confissão nada mais era do que uma forma da Igreja saber tudo o que seus fiéis faziam, obviamente, isso era colocado como uma forma de se livrar dos pecados, pois os sacerdotes tinham o poder divino de absolver os pecados, mas de fato, tudo era apenas mais uma forma de manipular a grade massa, principalmente no início da Era Cristã, onde muitas lutas pelo poder aconteceram e qualquer informação era muito importante. As pessoas foram se acostumando, se sentiam bem com a confissão, mas isso era apenas um fator psicológico, assim como, conversar com um amigo dá um grande bem estar. Quando você fala, você se liberta de culpas, de sentimentos negativos, pode contar com o apoio das outras pessoas e, a confissão, nada mais era que isso, mas infelizmente, muitas informações estratégicas foram obtidas dessa forma perspicaz de manipulação, que a humanidade não se deu conta por vários séculos. Muitas guerras e ataques foram articulados com base em informações obtidas dessa forma.

– Mas nonno, a confissão não era segredo? Eu lembro que já li sobre isso e eles falavam que tudo o que fosse dito na condição da confissão jamais seria divulgado.

– Sim, Vitor, essa era a versão que era contada aos fiéis, mas os homens não costumavam cumprir o que falavam. Não digo que todos faziam isso, mas como falei principalmente no início da Era Cristã, as coisas aconteciam assim. Depois de um tempo, isso se tornou desnecessário, mas foi mantido ainda por muito tempo, como um dogma, afinal, sempre era bom saber o que se passava pelas cabeças das pessoas ao redor do mundo. Eles poderiam até não divulgar essas confissões, mas entre seus pares, os sacerdotes faziam avaliações e levantamentos do comportamento humano, das atitudes, pensamentos e atos que eles praticavam e, sem a menor dúvida, isso servia como base para as ações da Igreja. E foram exatamente essas as justificativas que o Papa trouxe para a humanidade e que ajudaram a quebrar esse dogma, além de começar a fazer as pessoas pensarem e, com isso, elas passaram a questionar outros dogmas, e outros, e foram adquirindo uma consciência, embora ainda rudimentar, mas uma consciência de coisas que eles nunca tinham cogitado.

– Logo a seguir, o Papa abordou o celibato, que era algo praticamente exclusivo da Igreja tradicional e outras não tinham esse dogma. Sobre esse assunto, ele também foi bastante objetivo e direto, como sempre, falando com muita naturalidade ele explicou que o celibato nada mais era do que uma forma da Igreja para controlar sua riqueza, impedindo que seus bens fossem divididos, já que ao se casar, o sacerdote teria que dividir os bens com seu cônjuge e esse era o motivo real do sacerdócio, ou seja, não dividir os bens que a Igreja   havia conquistado. Também era fato que alguns sacerdotes realmente não sentiam a necessidade de um cônjuge, mas isso não quer dizer que eles não tinham necessidades sexuais, que eram reprimidas e penso que nem preciso dizer o quanto o celibato está ligado aos escândalos sexuais da Igreja.

– Isso é o que eu chamo de grandes mudanças, nonno! Ele teve coragem de assumir publicamente fatos que nenhum outro jamais fez, teve coragem para destruir a imagem da própria Igreja, não se importou com o reflexo disso, com a imagem negativa que foi gerada para a instituição que ele mesmo representava e comandava.

– Isso mesmo, Vitor, ele foi uma pessoa bastante iluminada, sacrificou os interesses de poucos em prol dos interesses da grande massa. Realmente, não se importou com a aparente destruição que ele estava causando, pois sabia que para construir algo novo, o velho tinha que ser completamente destruído e ele tinha consciência do seu papel na história. É preciso ser uma pessoa com muita convicção e altruísmo para destruir algo que ela faz parte, em benefício de um bem maior. Ele foi uma dessas poucas pessoas da época. Foi taxado de louco, tentaram derrubar seu posto inúmeras vezes, tentaram assassiná-lo outras tantas, mas ele se manteve firme aos seus princípios, firme com o compromisso da verdade e de trazer um pouco de luz para a humanidade.

– Era uma manhã fria de inverno quando o Vaticano, oficialmente, comunicou que Papa Bernardo I havia morrido. Ao contrário dos últimos Papas mortos, a morte do Papa Bernardo I não gerou as costumeiras multidões a Roma. A imprensa da época, sensacionalista e oportunista, divulgou matérias apelativas sobre o Papa, alguns até exaltando suas benfeitorias, mas sempre muito carregadas de sensacionalismo. Era estranho, ele foi o Papa que mais trouxe mudanças, mas foi o que menos teve público. Poucos foram os fiéis que se mantiveram adeptos à Igreja,  as pessoas ainda não tinham percebido o alcance das coisas que ele tinha trazido à tona e estando confusas em seus sentimentos, ao mesmo tempo que se sentiam gratas pela verdade, estavam com raiva pela mudança causada, uma raiva que hoje entendemos, não era contra a figura do Papa, mas apenas projetada nele, pois a verdadeira raiva era deles próprios, pelo quanto se deixaram manipular, pelo quanto foram passivos, mas como ainda não estavam acostumados a essa nova situação e, principalmente, não estavam muito habituados à verdade, não sabiam o que fazer com ela ainda.

– O Papa foi enterrado sem muitas honrarias, a Praça São Pedro não estava completamente cheia, líderes das nações quase não compareceram. Seu velório, ao contrário dos seus antecessores, foi rápido, durou apenas dois dias e ele foi sepultado numa cerimônia reservada a poucos. Esse foi o preço que ele pagou pela sua postura, normalmente as pessoas que trabalhavam com a verdade não eram muito bem vistas, as pessoas tinham se acostumado tanto com as mentiras, que os valores estavam praticamente invertidos e, nesse caso, não falo somente da religião, mas de todos os aspectos.

– Imediatamente após o enterro do Papa, os bispos se reuniram para articular novos planos, num novo conclave que iria eleger o novo representante da Igreja. Ao contrário dos conclaves anteriores, esse também não teve muita repercussão, praticamente não haviam “favoritos” ao cargo de líder da Igreja. Houveram tentativas desesperadas de recuperar o que havia sido perdido, alguns ainda insistiam nas ideias insanas, querendo reverter a posição do antigo Papa, mas, meu neto, se tem uma coisa que não muda nunca é o esclarecimento das pessoas, pois uma vez que um ser humano tenha entendido um fato, tenha adquirido o real conhecimento, não existe qualquer outra forma de fazê-lo perder esse conhecimento e essa consciência. Esse fato era temido não só pela Igreja, mas pelos políticos da época, mas isso, falaremos em outra situação.

– Nonno, então foi assim que tudo aconteceu e acabou?

– Ainda não, Vitor, ainda não. Como falei há pouco, alguns influentes da Igreja tentaram, num gesto desesperado, restabelecer os antigos preceitos e dogmas. Nesse último conclave que se tem conhecimento, a Igreja acabou por dar  a sim mesma um golpe final. Como a votação sempre foi secreta e, somente após a escolha ser feita, o resultado era apenas comunicado, eles acharam que escolher, entre seus pares, um dos cardeais que tinha ideias ainda muito conservadoras e radicais, sendo um membro da Opus Dei, que era conhecida por ser um segmento extremamente radical, com métodos nada convencionais, poderia ser a solução e, dessa forma, tudo foi feito. Em praticamente algumas horas o Vaticano anunciou a escolha do Papa que se chamaria Pio XIII, em reverência ao último Papa que usou esse nome, Pio XII, que entrou para a história cercado de muitas polêmicas, sendo uma delas a sua simpatia, registrada em uma carta, ao então líder da Alemanha, Adolf Hitler. Ficou claro, com essa referência, as reais intenções da Igreja, ou seja, eles queriam, a todo custo, resgatar as raízes e esse gesto foi a pior ação que poderiam ter feito.

– Nonno, mas Aldolf Hitler? O mesmo Hitler que…

– Sim, Vitor, esse mesmo, o mesmo Hitler que foi o responsável por um dos maiores massacres da história da humanidade, o mesmo Hitler que pregava a raça pura e em nome disso exterminou milhões de judeus, utilizando-os para experimentos desumanos, tratando-os como meros amontoados de órgãos. O nazismo entrou para a história como um dos períodos mais obscuros e cruéis, período esse em que a vida humana não valia nada, pois qualquer um que fosse diferente (não puro) poderia ser exterminado e isso era feito em massa, em grandes crematórios, câmaras de gás, campos de concentrações que eram campos de horrores e sofrimento. Mas, meu neto, se tem algo que não se pode negar sobre a figura diabólica de Hitler era que ele tinha um discurso político muito convincente, um poder de envolvimento do público, que ao que me parece, ficavam hipnotizados e passavam a obedecer seus comandos sem pensar e, com isso, fez milhares de simpatizantes e adeptos ao seu plano de massacre e, podemos dizer, que essas táticas de Hitler permaneceram na política por muitos anos, pois alguns políticos, séculos após Hitler, também tinham esse mesmo poder de persuasão, faziam o povo acreditar que os seus despautérios eram normais e aceitos, chegando ao absurdo de alguns os defenderem, como um famoso político do Brasil, que ficou conhecido pela sua política do “rouba, mas faz”.

– Vitor, a escolha do Papa Pio XIII gerou repercussão mundial extremamente negativa e, imediatamente, pessoas do mundo todo começaram a se revoltar e a erguer gritos de guerra contra a Igreja, que passou a ser atacada violentamente, em todos os lugares. As pessoas, que já estavam sofrendo muito com os últimos fatos revelados pelo Papa Bernardo I, não aceitavam mais a ideia de que os mesmos despautérios fossem cometidos e deram início a um violento movimento, que durou cerca de dez anos, mas que dizimou da face da Terra a chamada Igreja. Esse movimento acabou por refletir em todas as religiões, as pessoas entenderam que esse domínio não acontecia somente na Igreja tradicional, mas também em todas as demais, cada uma a sua forma, mas a intenção de todas era bastante clara: o domínio sobre as pessoas, a exploração da fé, e com isso,  a conquista de grandes fortunas, haja visto o que acontecia com os pastores, que se digladiavam em programas de televisão, em programas onde a exploração da fé chegava a beirar a loucura e também a ilegalidade, tudo era feito de uma forma, que hoje vemos com perfeita nitidez, tinham por objetivo somente promover o crescimento e enriquecimento das próprias instituições. Esses mesmos pastores também construíam templos suntuosos, eram proprietários de veículos de comunicação, faziam verdadeiras fortunas explorando a fé e a fragilidade dos seus fiéis, que mesmo sem ter muita coisa, acabavam doando boa parte do seu salário para a Igreja, pois eram convencidos de que quanto mais dessem, mais receberiam.

Orlando observou, nesse momento, que seu neto fez um gesto de repúdio, de asco, por saber que tamanha exploração já havia acontecido e em como essas pessoas, que promoveram esses atos, poderiam ficar em paz com sua consciência. Por ter percebido isso, continuou com sua fala.

– Meu neto, essas pessoas eram doentes, mentes perturbadas e totalmente desprovidas de qualquer sentimento humano, não se importavam com a exploração, não se importavam em saber que os seus seguidores poderiam estar doando somas em dinheiro que seriam vitais para sua própria sobrevivência, para sua alimentação, mas isso não os tocava de forma alguma.

– Foi no ano de 2285 que o  golpe fatal para a Igreja aconteceu, onde o ser humano não aguentava mais tamanha exploração, falsos conceitos, interesses escusos disfarçados de crença religiosas. Como falei, desde a eleição do Papa Pio XIII, em 2275, as manifestações foram se intensificando, de uma forma totalmente avassaladora, que fugiu ao controle das autoridades policiais e governamentais da época, em todos os países. O movimento começou com manifestações locais, mas logo foi ganhando dimensões gigantescas, as pessoas denominaram esse movimento de “Guerra da Libertação”, pois estavam se libertando de todos os conceitos até então proferidos. Igrejas eram saqueadas, líderes religiosos eram mortos e isso, independente de religião, os templos estavam vazios, os dogmas perderam completamente o sentido, os discursos patéticos dos pastores e exploradores não colocavam medo em mais ninguém. A própria justiça, numa tentativa de controlar as revoltas, agiu e começou a fazer uma investigação nos bens materiais desses líderes, que tiveram todos os seus bens confiscados, todas as licenças de concessão dos veículos de comunicação foram revogadas e, aos poucos, esses líderes foram saindo de cena. Muitos foram presos e, dentro dos presídios, assassinados cruelmente pelos outros detentos. As instituições religiosas passaram de perseguidoras a perseguidas, tudo aquilo que fizeram ao longo dos milênios se voltou contra elas mesmas, passaram a sofrer ataques cada vez mais pesados, mas o grande final ainda estava por vir.

– O Vaticano sempre foi conhecido como o símbolo do poder da Igreja e representava toda a sua autoridade, portanto, era óbvio que não passaria esquecido nos confrontos e, ao longo dos anos, sofreu vários ataques, mas sempre foram contidos, pois um grande contingente de guardas de todo o mundo foi deslocado para lá, numa tentativa de conter os ataques constantes. No entanto, mesmo com toda essa segurança aparente, nada surtiu efeito e, por ter chegado ao seu limite de tolerância, a humanidade, as pessoas, tomavam atitudes extremas. Tudo foi elaborado ao longo de anos, minuciosamente planejado para que nada desse errado. Nessa época, armas de bioterrorismo estavam em alta, muitos ataques já haviam sido feitos, mas nada que se comparasse a esse último ato, que não deixou nenhuma chance de defesa. Os bioterroristas utilizaram uma arma 100.000 vezes mais poderosa do que o gás sarim, que na época era conhecido com um dos piores e mais poderosos gases destrutivos, que foi muito utilizado em atentados. Essa arma letal foi chamada de “Gás da Libertação”, numa referência a Guerra da Libertação.

– Numa manhã de verão do ano de 2285, algo impensável aconteceu, toda a guarda do Vaticano estava preparada para todos os tipos de ataques terrestres, aéreos, mas nunca pensaram em algo desse tipo. Uma pomba branca sobrevoava a Praça de São Pedro e, esse fato, foi visto por alguns até como um presságio de paz, pois a pomba branca sempre simbolizou a paz e foi utilizada, inúmeras vezes, em cerimônias religiosas. Foi esse mesmo símbolo que baniu o Vaticano da Terra. Os bioterroristas haviam instalado um explosivo minúsculo nessa pomba, que seria acionado por um sinal de satélite e, essa mesma pomba, portava, amarrada em seu pé, uma pequena cápsula do Gás da Libertação, que seria liberado com a explosão do animal. O animal continuava sobrevoando a Praça quando um pequeno estalo foi ouvido, os guardas, todos atentos, pensaram ter sido um tiro e logo se colocaram de prontidão, mas eles sequer imaginavam o que estava acontecendo. O dispositivo explosivo foi acionado e com isso a cápsula do gás foi quebrada, liberando o gás, que em contato com o ar, se espalhou rapidamente, criando uma nuvem invisível sobre todo o Vaticano, uma nuvem repleta de um gás mortal e de efeito rápido e devastador.

– Ao inalar o gás, as pessoas morriam quase que instantaneamente, o efeito era tão nocivo que destruía as vias respiratórias em segundos e a pessoa morria asfixiada, mas, mesmo depois de morta, o gás ainda agia, praticamente desfazendo o corpo das pessoas. Nem preciso dizer que não houve sequer um sobrevivente em todo o Vaticano e boa parte das cidades que circundavam a região. A notícia se espalhou rapidamente, até porque, os bioterroristas também pensaram nisso, sabiam que não haveria possibilidade de ninguém entrar na cidade, já que o gás ficava ativo por muito tempo na atmosfera e qualquer um que tentasse ir até lá, também morreria instantaneamente. Eles então enviaram robôs com equipamentos de alta definição, para se certificarem de que tudo havia transcorrido conforme o planejado e, também, para enviar ao mundo as imagens do local. Quando perceberam que parte do plano havia dado certo, a segunda e última etapa foi colocada em prática. Mísseis de alto poder de destruição e de longo alcance foram direcionados ao Vaticano, sendo que essa etapa da destruição foi transmitida ao vivo pelas televisões da época, pois os bioterroristas invadiram as centrais de transmissão e começaram a enviar os sinais captados pelos robôs, através dos equipamentos de alta definição, enviados para verificar o sucesso da primeira etapa do plano. O mundo presenciou, em não mais de 15 minutos, a destruição completa do maior símbolo de poder da Igreja, que foi reduzido a um monte de pedras.

– Esse golpe, Vitor, foi decisivo e colocou um ponto final em toda uma Era, que foi conhecida por muitos séculos como a Era Cristã. Ninguém mais ousou pensar em fazer qualquer tentativa religiosa, os poucos templos que ainda existiam também sofreram ataques nesse mesmo dia, tudo foi mundialmente orquestrado, de forma a não deixar chances nenhuma de reestruturação.

– Nonno, estou perplexo! Como o homem chegou a esse ponto? Então, esse foi o fim da Igreja?

– Foi sim, Vitor, esse foi o ponto final na história da Igreja, todas elas, em todos os cantos do mundo. O homem, como já falei, teve atitudes extremas, mas foi assim que tudo aconteceu. A humanidade não sabia mais o que fazer, mas sabia o que não queria mais e a religião era um desses pontos que eles não queriam mais. No entanto, ressalto que esse gesto ainda não foi o suficiente para que a humanidade evoluísse, eles ainda sofreram muito depois disso, o fim das religiões apenas foi um marco, um início de uma grande transformação que estava por vir, foi apenas o primeiro passo.

Como já haviam passado horas e horas conversando, sem sequer se dar conta, ambos resolveram encerrar o encontro desse dia. Vitor estava satisfeito com o que havia ouvido, agora tudo havia sido esclarecido e ele tinha uma perfeita percepção dos fatos e, além de ouvir, ele também visualizou todos os fatos através do projetor da sala. Vitor deu um grande abraço no seu avô, um beijo em sua face e o agradeceu muito pelas explicações e, é claro, já queria saber do próximo encontro, onde o tema seria a política.

Seu avô, como sempre muito sensato, recomendou uns dias de descanso a ele, para que tivesse tempo de assimilar toda essa história, pois o próximo assunto também seria crucial e o entendimento dele, também, em partes, dependia do entendimento da religião, portanto, disse ao neto que agora, com calma, revisasse todos os pontos e se preparasse para mais uma série de conversas, que aconteceriam em alguns dias, mas não deixou nada marcado.

Cada um foi para sua casa. Orlando, sereno, com a sensação de ter passado ao seu neto uma grande parte do conhecimento sobre a história humana. Vitor, por sua vez, estava com o cérebro em plena atividade, pensando muito e sedento por mais conhecimento.